A MÁSCARA

A Máscara
 Tarsis Tindarsam
Muito querido pelo público adolescente e jovem, este conto foi escrito num só dia. Assim como O Enigma da Pedra, tal história faz parte da categoria Contos de Assombrações Noturnas, o que já é bastante sugestivo. Talvez seja o conto com mais suspense que eu já tenha escrito. Mas só o leitor pode sentir realmente o que a história oferece a cada instante. Essa narrativa foi escrita em meados de 2009, na mesma época (e quase um dia depois) que o conto de aventura e horror, Na Floresta. 

    Era uma noite fria, Dia das Bruxas, quando alguém bateu com força na porta dos Hangleton. Muito surpresos, o casal de velhinhos apressou-se para abri-la. Curvaram as cabeças para baixo e encontraram apenas uma caixa encardida sob o tapete envelhecido da porta. Olharam ao redor. Não havia ninguém. Somente a tênue luz dos lampiões acesos, no fim da estradinha. Howard Hangleton abaixou-se e pegou a caixa. Sua esposa fechou a porta depressa.
    ― Não sabia que o serviço de correios funcionava à noite, minha velha ― ele disse com a caixa nas mãos. Sentiu que o conteúdo não era muito pesado.
    ― Howard, meu velho, ponha na mesa. A caixa está lacrada? Você vai abri-la ou não? ― a meiga senhora perguntou ao esposo, muito interessada.
    Ele fez o que a velha lhe pediu. Então os dois olharam impassíveis para a caixa, mas logo a esposa estreitou os olhos, desconfiada.
    ― Acho que não tem remetente ― o velho constatou.
    A caixa tinha um lacre azul e vários selos com o rosto da Rainha da Inglaterra. O velho balançou a caixa.
    ― E se dentro dela tiver um bicho morto? ― perguntou a velha com os olhos arregalados. ― Alguma brincadeira macabra no Dia das Bruxas.
    ― Então sentiríamos um fedor de podre ou de sangue. Você pediu para eu abrir. Mudou de idéia?
    Ele começou a romper o lacre. Parou e falou muito sério:
    ― Pode ser a cabeça degolada de alguém. Afinal, como você disse, é noite de Halloween.
    A velha tremeu.
    ― Não me assuste, Howard ― ela pediu com os braços encolhidos e os olhos arregalados.
    ― Mesmo assim, é melhor você se afastar, pode ser perigoso.
     A mulher olhou para o esposo e obedeceu. Ele abriu vagarosamente a caixa. De súbito, o velho  soltou um grito rouco.
    ― Ó, minha Santa Edwiges! O que foi, Howard? ― a velha perguntou, apavorada.
    Ele a encarou e seus lábios se abriram em um sorriso traquina.
    ― Doces ou diabruras? ― perguntou o esposo, ainda sorrindo. ― Quero dizer, travessuras...
    ― Não faça de novo, Howard! Nossos corações já estão velhos demais para suportar brincadeiras como essas!
    ― Venha ver ― ele pediu, ainda sorrindo. ― Ainda não sei o que é.
    Ela se aproximou pouco à vontade. O velho enfiou a mão na caixa, desembrulhando de uma vez o que estava oculto.
    ― Uma máscara? De onde veio? Não parece de Halloween ― a esposa comentou.
    ― Acho que é africana. E há uma carta debaixo dela. Santa Edwiges! É uma carta de Jacob! ― exclamou o velho, ao notar a caligrafia desajeitada do filho.
    Os dois ficaram eufóricos.
    ― Ele já está na África, minha velha. ― disse, sentindo-se animado ao ler as primeiras palavras.
    ― Ó, meu menino já está lá? ― Ela lacrimejou enquanto tirava da mesa a caixa encardida com a máscara dentro. Tentava esconder do marido a saudade do filho. Não queria que ele se abatesse também.
    ― Preste atenção, vou ler ― falou, sentando-se em uma confortável poltrona perto do fogo e voltando os olhos à carta.
    ― Leia, enquanto deixo a máscara no console da lareira. ―  A velha pediu, prestando atenção no objeto. Ela não gostou muito, mas não disse nada ao esposo. A máscara era feita de palha, os orifícios dos olhos tinham um desenho demoníaco, a abertura da boca era esquisita, como a boca caída de um cadáver. Lembrava um artefato utilizado por feiticeiros africanos. ― Não vai ler? ― insistiu ela, querendo saber do filho.
    O velho já estava na metade da carta, voltou ao princípio e leu em voz alta:

    “Meus velhos, onde estou é extremamente quente. Sinto falta do clima ameno da Inglaterra e desse bairro tão distante, em Cambridge. Estou atendendo a muitas pessoas doentes. O  árduo dever da medicina me chama quase sempre. Mas vocês me conhecem, eu gosto. A África é um lugar pobre e ao mesmo tempo rico em cultura. Tive acesso a algumas tribos do Quênia e nada supera a grandiosidade da fauna, da savana e da beleza que emergem deste canto da Terra.
    Envio a vocês uma máscara feita por um feiticeiro de uma tribo de pigmeus chamada Okavango. Achei um presente interessante que representa bem a África. O povo daqui pratica muita feitiçaria. É comum encontrar animais degolados e mortos na estrada em cidades mais pobres.
    Devo estar ai perto da primavera. Talvez volte mais velho; o sol daqui é infernal.

    Abraços de seu filho Jacob Hangleton.”

    ― Essa carta foi bem menor que as outras ― comentou a velha.
    ― Acredito que nosso filho está muito ocupado. Acho que escreveu com pressa. Ao menos sabemos que está bem.
    ― Sinto falta dele, Howard.
    ― Eu também, minha velha, eu também.
    Ele se levantou meio abatido e entregou a carta à esposa. Ela enxugou as lágrimas da face, sentou em sua poltrona e pôs os óculos para dar sua própria lida na carta.
    O velho Hangleton foi até a lareira, tentando disfarçar a tristeza.
    ― Como fico com esta coisa? ― O marido levou a máscara africana ao rosto.
    Ela olhou atenta para o esposo. Viu os olhos dele se moverem pelos dois orifícios. Sentiu medo. O velho parecia mau com aquilo.
    ― Howard, tire isso.
    Ele continuou com a máscara, os olhos movendo-se, as duas bolinhas opacas e frias. Então mexeu a cabeça de um jeito demente. Isso a assustou ainda mais.
    ― Howard, por favor!
    Ele continuou usando-a.
    ― Howard!
    ― Está bem, está bem! ― Ele riu. ― Você se impressiona com tanta facilidade!
    ― Não gostei dessa coisa ― ela comentou, mas se arrependeu de imediato. Sabia que aquilo representava uma conquista profissional do filho e, de certa forma, o esposo também se sentia realizado.
    ― Também não gostei ― ele falou rindo, meio sem graça, deixando a máscara no mesmo lugar.
    Ela ficou surpresa, esperava que o marido gostasse de todos os presentes que Jacob mandava.
    ― Não é como aquela bengala tikuna que ele enviou do Brasil. Ou o totem em miniatura do Canadá. Essa coisa é diferente. É assustadora. ― ele falou.
    ― Pensei que fosse ficar magoado por eu ter dito aquilo ― disse a velha, receosa.
    O marido sorriu outra vez, dessa vez com os olhos azuis alegres no rosto enrugado:
    ― Amanhã veremos onde vamos guardar isso.
    ― Howard, por que não guardamos agora? Ela me dá arrepios.
    ― Está bem. Vou guardar no porão e deixá-lo bem trancado. ― ele gargalhou ao dizer a última frase. Pegou a máscara e sumiu da sala.
    A velha ficou em sua poltrona acolchoada tricotando um novo cachecol vermelho. O fogo da lareira crepitava, suave. Pensou como estava confortável ali. O marido juntara toda a aposentadoria para fazer algumas melhorias na casa. Moravam há muito tempo nela. Era num bairro isolado, mas não trocava a tranquilidade daquele lugar por nada. Lembrou-se dos tempos difíceis. O esposo trabalhou três vezes mais e finalmente podiam então descansar. A velhice seria bem tranqüila.
    O velho voltou com o rosto ligeiramente cansado:
    ― Minha velha, acho que vou deitar mais cedo.
    ― Está bem, já estou indo. Feche a janela, a noite está fria ― ela o aconselhou.
    Ele a beijou na testa e subiu a escada. A velha continuou lá, tricotando seu cachecol vermelho vivo.
    Sozinha, percebeu que estava com sono. Tinha de terminar logo aquilo. Apesar de ser relaxante, tricotar exigia certo poder de concentração.
    Alguma coisa estalou na lareira. Talvez algum pedaço de madeira fria. A agulha em suas mãos cintilou, refletindo as labaredas do fogo. Buscou mais linha na cesta ao lado da poltrona. O fogo crepitou alto, outra vez. Quando virou a cabeça para olhar, lá estava a máscara pálida no console da lareira.
    ― Howard!
    Ela tinha certeza de que a máscara fora guardada. Howard fizera isso, sem dúvida ele a guardara. A máscara a olhava. Aqueles dois olhos vazados e diabólicos.
    ― Howard! Howard! ― Dessa vez, ela gritou.
    O marido correu pela escada. Correu tão depressa que tropeçou, precipitando-se como um saco de batatas pelos degraus até o chão.
    ― Howard! Você está bem? Howard, fale comigo! Fale comigo! ― Ela correu desesperada, deixando o tricô cair.
    O velho gemia ainda tonto, com uma das mãos na costela.
    ― Acho que estou bem. ― Ele tentou se erguer.
    ― Não se levante. Devemos chamar um médico.
    ― Onde vamos encontrar um médico uma hora dessas, minha velha?
    ― Descanse um pouco, meu velho ― ela falou carinhosamente. ― Como você é teimoso!
    Ele já estava de pé.
    ― Por que diabos você gritou? ― ele perguntou à esposa, massageando o lado esquerdo do corpo.
    A velha senhora se lembrou porque havia gritado, então, de imediato desviou a cabeça e os olhos para o aparador da lareira.
    ― A máscara! Ela estava... ― A mulher nem se deixou completar a frase. Ficou de queixo caído. A máscara não estava mais lá. Tinha sumido.
    ― O que? O que foi? ― o velho insistiu.
    ― Tenho certeza de que... Estava ali, perto da lareira. Aquela máscara...
    ― Mas eu a guardei no porão que está trancado ― o esposo a lembrou.
    ― Eu sei, mas... ― Ela ainda não acreditava.
    Os dois se entreolharam por algum tempo.
    ― Sabe, minha velha, senti medo de ficar naquele quarto escuro. Já estava pegando no sono quando imaginei aquela máscara pálida bem na minha frente. Acho que devíamos queimá-la. ― ele sugeriu com o semblante assustado.
    ― Vamos juntos ao porão? Mas se você não estiver em condições, irei sozinha. Você está realmente bem?
    ― Já estou melhor, não se preocupe comigo. ― Ele disfarçou a dor na costela, que persistia.
    A velha pegou as chaves do porão. Usou-a para abrir a porta. Eles desceram a escada de madeira, apoiando-se um no outro.  Os degraus rangiam.
    ― Depois desta noite, não vou me arriscar a subir e descer tantas vezes uma escada. ― O velho riu.
    ― Podíamos ter construído um quarto no andar debaixo. Nunca pensamos que a velhice exigiria alguns cuidados.
    Detiveram-se no meio da escada. Estava bem escuro ali.  Quase nenhuma claridade escapava da porta aberta.
    ― Onde está a luz? Por que não funciona? ― a velha indagou ao apertar o interruptor.
    ― Porões mal-assombrados sempre são escuros e úmidos. ― O marido brincou com voz em suspense.
    ― Você está me assustando de novo! Às vezes me lembra seu filho Jacob.
    Já haviam chegado ao último degrau quando viram a máscara pendurada na parede.
    ― Lá está ela ― o velho disse.
    ― Vamos logo. Vamos pegá-la e sair daqui. Essa escuridão toda me dá arrepios.
    Eles apanharam a máscara com medo de encará-la. Subiram um pouco mais depressa. No entanto, antes que chegassem até a porta, o velho Hangleton brincou outra vez:
    ― Talvez a porta se feche antes que cheguemos até ela. Aí ficaremos presos nessa escuridão.
    ― Howard, não vejo mais graça alguma nisso! Não estou me sentindo bem. Você não viu o que eu vi! ― ela trovejou, enraivecida.
    ― Na verdade, vi a máscara atrás do vidro da janela, lá no quarto. ― Ele confessou, sério. ― Ou pelo menos pensei ter visto algo parecido...
    ― Por que não me contou? ― ela perguntou, intrigada.
    ― Porque você se impressiona muito.
    ― Foi por isso que saiu do quarto correndo, quando gritei?
    ― Não acredito mesmo ter visto alguma coisa, minha velha. Acho que fiquei impressionado também.
    Não se demoraram muito para trancar o porão, atravessar a sala e jogar a máscara no fogo da lareira. Ela incendiou com facilidade. Uma fumaça branca e encorpada subiu pela chaminé.
    ― Jacob vai ficar triste ― a velha comentou.
    ― Podemos dizer que nunca recebemos a encomenda. Uma falha nos correios britânicos ― o velho falou, atento à mascara que queimava.
    ― Espero que ele acredite. ― a esposa desejou.
    ― Depois temos de queimar a caixa também. ― completou o velho.
    Subiram as escadas, olhando ao redor, sempre vigilantes. As últimas cinzas da máscara se elevaram nas labaredas.
    O velho apoiou-se em sua velha até chegar no degrau mais alto. Ele se queixou da dor na costela.
    Quando entraram no quarto, a esposa foi até o guarda-roupa e tirou um pequeno frasco. Abriu a tampa e melou os dedos com um ungüento lácteo. Depois massageou o lado arroxeado do corpo do marido.
    Então, deitaram-se na cama e puxaram os grossos cobertores para si.
    ― Boa noite, minha velha.
    ― Boa noite, meu velho.
    Não sabiam se teriam uma noite de sono muito boa, depois do ocorrido.
    A velha pensou que estivesse louca. Achou ter visto o reflexo da máscara na parede que dava para a janela. Olhou para vidraça. Não havia nada. Tentou dormir, mesmo vendo o rosto pálido da máscara ao fechar os olhos.
    Lá embaixo, o fogo da lareira diminuiu. A escuridão natural da noite sombreou a sala. Um ruído quebrou o silêncio. Eram passos.
    ― Ouviu isso? ― o velho se ergueu assustado.
    ― Meu Deus, eu ia perguntar a mesma coisa. Não consigo dormir, Howard. E agora esse barulho.
    ― Vou pegar a espingarda ― falou, decidido.
    ― Por que não telefonamos para polícia? ― ela aconselhou.
    ― Bem, é que... Não temos telefone. A linha não funciona desde o último vendaval.
    ― Você não me disse nada. Por que você nunca me diz nada? ― a esposa  perguntou, aborrecida. ― É por isso que não queria que eu chamasse um médico. Não queria que eu descobrisse que estamos sem telefone.
    ― Ora essa, quase não o usamos. Você só telefona para a prima Louise na época do Natal.  Eu ia resolver o problema na semana que vem.
    ― Não vamos usar a arma, Howard. Vamos gritar para os vizinhos pela janela.
    ― Minha velha... ― o marido falou, tímido. Tinha outra coisa para contar.
    ― Sim, Howard ― ela disse, esperando uma surpresa ruim.
    ― Os Stevenson viajaram, os Collins também...
    A esposa mordeu os lábios. O marido continuou:
    ― Os Collins foram para o casamento da filha na Irlanda. E os Stevenson, ao que parece, compraram uma casa em Londres. Há uma semana não moram mais ao lado. Acho que ninguém pode nos ouvir, já que nesse quarteirão existem apenas três casas, incluindo a nossa.
    ― Então pegue a arma ― a velha  concordou, contrariada.
    O homem se levantou com dificuldade. Abaixou-se e pegou uma espingarda Remington de cano duplo que ficava guardada embaixo da cama. Abriu a gaveta do guarda-roupa e tirou algumas balas.
    O velho Howard lembrou-se de que não tinha porte autorizado para aquele tipo de arma. Lembrou-se também de que a mulher não sabia deste detalhe, e nem deveria saber.
    ― Howard, e se isso for bruxaria? ― a velha perguntou.
    ― Hã. O quê? ― o velho disse sem dar importância às ideias da mulher, enquanto aprontava a espingarda.
    ― E se for magia negra? Uma vez eu tropecei naquela estranha bengala tikuna semelhante a uma cobra, e minha artrite nos joelhos piorou depois disso. Nunca mais a usei. Jacob pode ter nos enviado essa máscara sem saber que ela carregava algum tipo de maldição...
    ― Besteira! Você ainda está pensando nela? Nós a queimamos! ― o marido foi estúpido ao dizer. ― Pode ser um ladrão, um arrombador de casas.
    Fizeram silêncio. Os passos rangiam e vinham mesmo do andar debaixo.
    ― Acho que tem razão. Mas vou descer com você. ― a velha falou.
    ― Fique atrás de mim! ―  pediu o marido, sobressaltado.
    ― Está certo.

    Eles desceram devagar pela escada, a madeira dos degraus rangendo. Olharam atentos ao redor. O velho empunhava a espingarda. Aparentemente tudo estava calmo. Algumas brasas da lareira continuavam acesas, deixando a sala mergulhada numa penumbra laranjada e balouçante. 
    ― Há alguém aqui? Apareça! Tenho uma arma ― o velho gritou.
    ― Howard! Ali!
    A máscara flutuava na escuridão. Saíra pela entrada da cozinha. A velha soltou um berro. O velho não pensou duas vezes. Mirou e atirou. Um líquido rubro espirrou na parede. Sentiu que não havia acertado a máscara. Mesmo assim, ela caiu no chão de forma pesada e estranha.
    Logo perceberam que alguém a usava. Alguém vestido todo de negro.
    ― O que é isso? ― O velho enrugou a testa.
    Havia sangue no chão que escorria da figura negra até formar uma poça densa e escarlate. O cheiro de sangue era forte.
    Eles se aproximaram, ainda com o eco do tiro nos ouvidos. Os dois velhos, cansados, abaixaram-se para tirar a máscara devagar.
    ― Ó, meu Deus!  ― A velha tremeu, os pelos da nuca arrepiados ― Ó, não! Não! Howard! Não!
    Ela pôs as mãos na boca.
    O velho ainda não tinha reconhecido. Finalmente quando as sombras se alinharam na vista, percebeu que havia atirado no próprio filho.
    ― Jacob... ― ele tentou gritar, mas conseguiu emitir apenas uma voz sufocada. ― Jacob!
    Já era tarde, pois os olhos azuis de Jacob estavam sem vida. O rosto era bonito, mas agora suava pálido, da cor da máscara caída ao seu lado, manchada de vermelho.
    ― O que fizemos?! O que fizemos, Howard?! ― a velha gritava, tremendo incontrolavelmente. Sentada no chão, usou as mãos para tentar diminuir o fluxo sanguíneo que saia do peito do filho. ― O que vamos fazer? Diga alguma coisa, Howard!
    ― Deixe-o. Ele já está morto ― o marido sussurrou. Lágrimas escorriam por sua face. Então juntou-se à esposa, sentando-se ao lado dela, perto do corpo do filho.
    Os velhos choraram a noite toda. Choraram tanto diante do filho morto que acreditaram que seus pobres corações não suportariam a imensa dor. Quando, por fim, só restou a aflição e as lágrimas quase não desciam, eles observaram as roupas negras que o filho vestia.
    ― Howard, por que ele está todo de negro? ― ela indagou, apática, a voz tão baixa que o marido quase não a ouviu.
    O velho coçou a cabeça e levantou-se, abatido. Demorou alguns segundos até pensar em alguma coisa:
    ― Acho que ele queria nos pregar uma peça, fazer uma surpresa para nós.
    ― Devemos chamar a polícia ― a velha falou debilmente.
    ― Você está louca? Não vão acreditar que foi um acidente! E quando provarem que eu o matei, vão me prender. Talvez passe anos na cadeia, e lá dentro é como uma sentença de morte! ― disse o marido, temeroso. ― Você vai ficar sozinha, Úrsula.
    Ela não queria uma velhice solitária. Pensou que o marido pudesse estar certo. Sabia que fora um acidente.
    ― Então, o que vamos fazer, Howard? ―  A velha puxou o filho morto até o colo, sujando-se com o sangue. O velho tremeu. Era a visão mais horrível que testemunhara na vida.
    Ela  soltou um longo suspiro.
    ― Vamos enterrá-lo no quintal ― o velho murmurou, apático.
    A esposa o olhou, triste; tão profundamente triste e enfraquecida que o marido começou a chorar.
    ― Não me olhe assim! ― O velho pranteou mais alto. ― Isso é pior que a pena de morte! Não sabe o quanto! Vou passar o resto da vida me sentindo culpado... Ó, Deus!
    Ele abaixou a cabeça e percebeu que as lágrimas desceram mais pesadas dessa vez.
    A esposa deixou o filho de lado e o abraçou. Era a única coisa que podia fazer naquele instante. O velho Hangleton não teve nojo algum dela, afinal, era o sangue do filho que ela tinha nas vestes.
    A velha se despediu do filho morto, beijando-o na testa fria. As lágrimas caíram sobre ele. O velho pediu perdão ao filho, mesmo sabendo que  Jacob jamais responderia. Uma opressão apossou-se dele, uma tristeza que não tinha fim.
    Naquela mesma noite, carregaram o corpo do filho até o quintal e o enterraram debaixo de uma frondosa bétula. Lembraram-se dos tempos em que Jacob era criança e brincava nos galhos da árvore.
    Não disseram nada. O silencio caíra sobre os dois. O velho pensou em proferir algum salmo, mas não, não podia. Sentia-se desolado, contrafeito, culpado. A velha apenas arrumou algumas pedras brancas tiradas do jardim.
    Lá fora estava frio, mas eles não se importaram. A dor era bem maior.
    No chão ensanguentado da sala eles observaram a máscara. Ela continuava lá, caída.
    ― Howard? ― a esposa o chamou, imóvel.
    ― O que foi? ― o velho se virou depressa.
    ― Não queimamos a máscara? ― ela perguntou para ter certeza de que não estava num pesadelo. Esquecera que o filho usava a máscara quando o marido atirou.
    ― Sim, queimamos. ― Um vinco formou-se no cenho dele. ― Por quê?
    ― Mas Jacob estava usando outra máscara. Por que tinha outra máscara?
    ― Não sei. Talvez, como eu disse antes, quisesse nos fazer uma surpresa no Dia das Bruxas ― ele finalizou. Tentava não pensar mais no assunto, contudo, a mulher insistia.
    ― Vou queimar esta também ― Ela apontou para a máscara ensanguentada. ― Aliás, encontrei mais outra no quintal, caída na grama. Estava com algum tipo de resina.
    ― Onde a guardou? ― perguntou o esposo, intrigado. 
    ― Já a queimei. ―  E, com essas palavras, jogou a última máscara no fogo da lareira.

    Aqueles pobres velhos nunca teriam conhecimento dos planos cruéis do filho. Jacob era perverso, um tipo de monstro silencioso. Arquitetara matá-los de susto, no intuito de herdar mais depressa a propriedade dos pais. Articulara enlouquecer os velhos de tal forma que provavelmente eles teriam morrido de medo.
    Jacob sabia que os pais tinham a saúde frágil. Um susto e eles escorregariam, ou bateriam a cabeça; os níveis de adrenalina subiriam, possibilitando uma parada cardíaca. Jacob esperava que reagissem assim.  Os pais eram supersticiosos, por isso tentou envolvê-los em um falso mistério sobrenatural.
     Caso o plano não funcionasse, iria assassinar os próprios pais, enquanto estivessem dormindo. Acreditou que ninguém estranharia. Era uma coisa tão comum em bairros isolados.
    Como os vizinhos não estavam por perto, usou a oportunidade e cortou os fios telefônicos, três dias antes, para que os pais ficassem incomunicáveis. Os velhos não teriam como pedir ajuda ou chamar a pólicia.
    Ao bater na porta, aquela noite, deixando a caixa sobre o tapete, sabia que os pais teriam medo da máscara, e logo tentariam se livrar dela. 
    Sua velha mãe nunca desconfiaria, mas Jacob, depois da ocasião em que o pai guardara a máscara no porão, entrara todo vestido de preto por uma das janelas, deixando a máscara no console da lareira sem que a mãe percebesse. Quando seu velho pai caiu pela escada, ele aproveitou a oportunidade e silenciosamente tirou a máscara. A velha começou a pensar que estava louca, é claro.
    Antes disso, quando o pai estava no quarto, Jacob, do lado de fora, já havia usado uma escada para colar a máscara no vidro da janela. A máscara com a resina. Fez tudo com extremo capricho. Até mesmo provocou o ranger do chão, para que os pais descessem e assim encontrassem a máscara outra vez.
    Todavia, nunca pensou que o pai tivesse coragem de atirar. O velho jamais usara a espingarda alguma vez na vida. E, então, Jacob estava morto e enterrado. Mas também havia de alguma forma matado os próprios pais, pois a tristeza caminhava diariamente com aqueles velhos.
    De vez em quando, os velhos tinham pesadelos de morte e às vezes nem olhavam um para o outro. Depois de alguns anos, perceberam que o perdão e o amor eram os únicos sentimentos capazes de superar toda aquela terrível lembrança. Entretanto, nunca iriam desconfiar que durante toda a sua existência, Jacob Hangleton usara outro tipo de máscara.

14 comentários:

Dark Gero disse...

Perfeito. Muito bem escrito. O suspense foi bem dosado e a narrativa te leva para dentro da história. Tenho que admitir que me surpreendi com o final. Uma sacada muito boa. Como em CAIM, a maldade permeia esse conto como o ar que os personagens respiram. Parabéns, Tindarsam!

T. Tindarsam disse...

Valew amigão!

Anônimo disse...

não gostei. o argumento é muito bom mas acho que não deveria ter uma explicação ao final. o desfecho deveria acontecer dentro do conto e talvez fosso preciso envolver mais personagens, o que poderia nos levar a conto policial que nem por isso deixaria de ser terror. talvez fosse mais angustiante e excitante se o leitor, de alguma forma, participasse dos pensamentos do assassino ou tivesse acesso aos bastidores no momento dos acontecimentos. a fórmula do feitiço contra o feiticeiro é muito boa mas acho que precisaria de mais clima de terror como ventania, noite escura, vozes estranhas entre outros. Obrigado pelo conto.

Dark Gero disse...

Discordo, companheiro anônimo. O conto é calcado no suspense dos velhinhos estarem sendo assombrados por uma ameaça sobrenatural. O que o conto traz é um desfecho-reviravolta, onde a trama toma um rumo totalmente diferente, depois do que seria o final, quando entra a revelação narrada, explicada. O que o caro leitor sugere, na minha opinião, tiraria a grande sacada do conto, que é, justamente o Tchanãããã!!!!!

T. Tindarsam disse...

Bem, ao leitor anônimo. Esse conto foi muito inspirado nos Contos Clássicos ingleses, mas acredito que o Gero tem razão, conto tem um desfecho-reviravolta. Mesmo assim agradeço sua opinião.

Susy Ramone disse...

Surpreendente!!!!!
Impossível começar a ler e não continuar. Imaginei um desfecho totalmente diferente. Perfeito!

Tanner Novaes de Menezes disse...

Bom, por onde começar...
Gostei do conto. E realmente entendi que vocÊ queria levar o leitor a acreditar que fosse algo sobrenatural, e não um "humano" pregando uma peça.
Gostei da forma como foi realizada a narrativa da historia, mas tenho que concordar em alguns aspectos com o an}onimo. A explicação final ficou mt artificial, poderia ter sido feita de forma mais natural, não de forma explicativa como foi feito.

Gostei muito do conto, suspense na dose certa e causa angústia no leitor, que é o que se almeja o escritor. Mas principalmente, adorei a frase final: "Entretanto, nunca iriam desconfiar que durante toda a sua existência, Jacob Hangleton usara outro tipo de máscara." Que pra mim foi o ápice deste conto.

Rockson Pessoa disse...

fala meu amigo...

Gostei da moral oculta... Dessa perspectiva de demonstrar que pode haver máscaras sob máscaras.
Gostei da brincadeira mórbida - esse humor que a morte traz, e por falar em morte, quem diria - um médico como assassino. Parece folclore inglês, digno do Sherlock
abraço meu amigo e você sempre surpreendendo com teus enredos magníficos

Anônimo disse...

Priiimeiro comentário , ah que honra kkkkk Como os outros contos, este também é muito interessante. É metafórico e tem todo um suspense, com uma pitada de drama. Com um final surpreendente e triste, mas por outro lado bom, porque os pais nunca conheceram o verdadeiro filho, e este sempre se escondia atrás de uma máscara, e está não deixava transparecer a sua real identidade, que era a de um homem ambicioso e malvado.

A Leitora disse...

Máscara bendita. nem vou dormir, agora são 22:08 da noite, isso é coisa que se escreva?!
Muito bom o conto, adorei, agora só me resta tentar dormir e não sonhar com a Máscara. ehehe
beijos.

T. Tindarsam disse...

KKKK obrigado pela opinião. Mas vc não vai dormir se ler o Enigma da Pedra. kkk abraços

Carol Szabadkai disse...

Bom, eu li durante o dia, mas o suspense foi grande mesmo assim... rsrsrs Espero esquecer até a noite. Muito bom! Vou digerir esse e depois passo para sua outra sugestão.

T. Tindarsam disse...

Ah obrigado! Não esquecam de ler também dos outros autores, o conto do Dark Gero e a Suzy Ramone, são ótimos os contos deles. Obrigado a todos pelos comentários.

Tiago Toy disse...

Gostei.

O desfecho, em OFF, foi muito bem escrito. Seria bem legal se a história fosse prolongada, tornando-se um suspense policial, mas não é o caso.

A nota inicial passa a impressão de que será algo a assombrar a noite do leitor, mas confesso que não senti medo. Será porque ainda é dia? Não sei.

Vou ler esse "Enigma da pedra" e ver se é tão assustador assim.

Sucesso!

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