CAIM


Caim

Dark Gero
Como dizia Dostoievsky: “O crime é o maior dos horrores humanos”. É nessa mesma sintonia que ofereço o conto Caim, do livro de contos Obscura, escrito pelo novo e engenhoso escritor, Dark Gero. É o tipo de história que guarda surpresas para o leitor de uma forma bem estruturada. No entanto, a leitura não e só interessante, mas reflexiva, pois levanta questões sobre o comportamento humano, como o ciúme, a inveja; além de temas sérios como o estupro e o aborto. Sem deixar o fato de ser muito mais que uma alegoria bíblica, baseada no relato de Gênesis, sobre o desfecho entre os filhos de Adão e Eva. Mesmo o conto lembrando um roteiro de teatro ou cinema, a narrativa tem traços shakespearianos por abordar gêneros da Literatura Universal, como o crime e o drama, sempre tão atuais. É com certeza uma excelente leitura!

     O celular de Luciano tocou. O carro estava em alta velocidade na estrada escura. Era seu pai.
     — Algum sinal dele? — perguntou desesperado.
     — Nada ainda — respondeu.
     — Eu liguei para a polícia, estão a caminho.
     — Tudo bem, vou continuar procurando — disse desligando o celular, de olho na estrada, com um milhão de coisas na cabeça. Tânia estava no banco ao seu lado, rezando para que não acontecesse nenhuma tragédia.

*

     Talvez nada justificasse o que ele estava prestes a fazer, ou, se justificasse, ainda assim seria o mais abominável pecado que já cometera. Nunca fora muito religioso, mas acreditava que se houvesse um Deus ou um paraíso, ele jamais conheceria. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas não deviam. Ele tinha de manter-se frio naquele momento, para que sua consciência não o martirizasse tanto pelo resto de sua vida.
     Era tarde da noite. Lucas estava em seu carro, escondido sob a sombra de uma árvore. Do outro lado da rua, estava a casa de seu irmão Luciano. Estava lá com sua namorada. Ele esperaria pacientemente que ela fosse embora e o deixasse sozinho...
     Seu irmão...
     Nunca odiara tanto alguém na vida. Era três anos mais velho, mais bonito, mais inteligente. Todos o idolatravam, exceto seus pais, que por ele ser o caçula, talvez, sempre o deram mais atenção. Mas o que era a atenção dos pais comparada a do mundo? Lucas, quando criança, era tímido e introvertido, enquanto Luciano fazia amizade com todos, fazia com que todos o amassem. Quando adolescentes, todos os professores de Luciano elogiavam seu excelente desempenho na escola, seus talentos múltiplos para o esporte, música e computação. Sem falar que ele era engraçado. As garotas se derretiam por ele, enquanto Lucas nem mesmo era notado. A única garota que se interessou por ele, era uma novata na escola, chamada Teresa. Era bonita, mas ele não a amava. Namoraram pouco tempo e ele terminou, pois não queria fazê-la sofrer.
     Luciano passou no vestibular na primeira tentativa. Lucas só conseguiu na terceira. Lembrou-se quando seus pais fizeram uma grande festa para comemorar. Não entendia por que não fizeram comemoração nenhuma para Luciano. Seus pais eram o paradoxo de sua vida. Sempre o mimavam, orgulhavam-se, mas eram indiferentes ao seu irmão. Talvez por culpa de ter tido um primogênito tão perfeito e um desastre como segundo filho, ou por pena, simplesmente.
     E por isso os odiava.
     Não queria a compaixão deles, não precisava. Seu irmão abraçara o mundo e ele ficara sempre à sua sombra. Poucos sabiam seu nome; ele era mais conhecido como “o irmão do Luciano”. Não tinha identidade, nunca cresceria. Não com seu irmão ofuscando-o.
     O pior era que Luciano era um bom irmão. Generoso, prestativo, sempre educado, compreensivo. Era mais um motivo para odiá-lo, o fato de não ter motivo algum.
     Até certo dia... depois de conhecer Tânia.
     Já havia se formado em Matemática, era um professor assalariado e Luciano já era a um bom tempo um advogado bem-sucedido. Lucas lecionava em um preparatório para concursos, quando conheceu Tânia. Ela tinha uma beleza rara, indescritível. Era um pouco acanhada, o que deixava seu sorriso inocente altamente sensual. Lucas apaixonou-se no ato. Ela o abordara na saída do preparatório, para tirar uma dúvida qualquer. Ele aproveitou para convidá-la para tomar algo. Não sabia de onde tirara a coragem, e de tão nervoso, transparecia seu interesse por ela. Ela sorria de forma cúmplice, demonstrando seu recíproco encantamento por ele. Conversaram a noite toda em um barzinho; Lucas não tinha dinheiro para um restaurante. Ela ria do jeito com que ele falava, como se conhecessem um ao outro há muito tempo. Era dois anos mais nova que ele, estava se formando em História. Se passasse no concurso público, trancaria o curso universitário. Bendito preparatório, pensou Lucas. Fora o que ligara os dois.
     Conversavam todos os dias após a aula; e um dia Lucas convidou-a para jantar em sua casa. Sabia que ela não iria, mas para sua surpresa, ela aceitou. Ele ainda morava com os pais, a contragosto. Só não comprava uma casa para si, porque o salário não permitia. Luciano morava sozinho em um apartamento, mas ia visitar os pais de vez em quando.
     Aquele dia fora um deles.
     Maldito dia.
     Lucas apresentou-a à família como “uma amiga da escola”, mas seu desejo era apresentá-la como namorada, futura noiva, qualquer coisa assim. Eles nasceram um para o outro, tinha certeza. Luciano fora mais educado que o habitual, e mais engraçado também. À mesa, Lucas nunca teve sentimento tão forte: o medo da perda, um ciúme incontrolável. Tânia ria o tempo todo do que Luciano falava, de suas histórias, de como as contava. A conversa na mesa resumira-se aos dois; Lucas e os pais estavam sobrando. Seu pai percebera seu desconforto e até que tentou falar bem dele, exaltando suas qualidades para a jovem; mas Luciano, com um comentário ou outro, conseguia prender a atenção dela, seus belos sorrisos, sua admiração.
     Lucas não dormira naquela noite. Tivera pesadelos acordado. Imaginava-se o resto da vida com os pais, e Luciano casado com Tânia...
     Não!
     Ele a conhecera primeiro, ela pertencia a ele. Luciano tinha tudo, mas não a merecia. Ele a merecia. Iria conquistá-la, denegrir a imagem do irmão. Custasse o que custasse. No dia seguinte, após a aula, conversara com Tânia muito pouco, pois ela estava apressada para ir embora. A curta conversa resumira-se a como Luciano era interessante e inteligente. Mencionou que seus pais eram amáveis, apenas por educação, pois ela não tinha muito a falar sobre eles.
     Sentiu que estava perdendo o que nunca teve para o maldito irmão que tivera tudo. Resolveu declarar o que sentia para Tânia. Convidou-a para jantar em um restaurante, pois o barzinho não seria nada romântico. Procurava as palavras certas para expressar-se. Foi quando ela falou que tinha algo para lhe confessar. Seu coração gelou, quando Luciano entrou sorridente no restaurante, aproximando-se dela...
     Beijou-a.
     O chão desabou sob seus pés. Ele sentiu uma náusea estranha, uma vontade de vomitar. Seu corpo queimava de ódio e ciúmes por dentro. Uma mistura corrosiva, dolorosa.
     — Lucas, eu e seu irmão estamos namorando. Desculpa não ter dito nada antes...
     — Ela era só sua amiga, você disse — defendera-se Luciano, sorrindo.
     Luciano devia ter ligado para ela, e ela dito onde estavam. Ficaram os três no restaurante. Lucas sentiu que ia desmaiar, queria acordar daquele pesadelo...
     Mas não acordou.
     Luciano comprou uma casa próxima à residência de Tânia. Namoravam sério, até pensando em noivado. Era demais para ele! Aquele fora o cúmulo. Seu irmão tinha de desaparecer, para que ele fosse feliz.
     Esperava em seu carro pacientemente na escuridão, o momento em que Tânia sairia da casa de Luciano, deixando-o sozinho. Estava lá há horas. Imaginou com profundo nojo e amargura os dois em uma transa alucinada. Mais uma na longa lista de seu irmão.
     Finalmente.           
     Abriram a porta e ela despediu-se dele com um beijo demorado. Lucas viu-a dobrar uma esquina... a de sua casa. Cretino, nem mesmo a deixava em casa! Saiu do carro com a faca na mão. Era a hora.

     A campainha tocou. Luciano foi abrir a porta, antes verificando quem era pelo olho mágico.
     — Olá, mano. O que faz aqui a esta... — assustou-se ao ver a faca. — O que é isso, Lucas?
     — Você tem que morrer, Luciano. Só assim eu vou existir.        
     Luciano recuou assustado. O irmão tremia, com os olhos lacrimejando.
     — Você me tirou o que eu nunca tive. Não deixou que eu fosse feliz, porque você roubou a felicidade toda pra você! Você sempre foi o primeiro, Luciano, o primeiro e único! Deus sorriu pra você e cuspiu na minha cara.
     — Do que você está falando, Lucas? Eu nunca te tirei nada, eu sempre te amei, maninho.
     — NÃO ME CHAMA ASSIM! — explodiu Lucas. — Não seja hipócrita! Você nem mesmo ama a Tânia, mas está com ela pelo prazer de me ver sem ninguém!
     — Então é isso? Vai me matar porque roubei sua namoradinha? Escuta aqui, Lucas, cresça! Não sabe lidar com a derrota, problema seu, mas isso não é razão pra agir dessa maneira! Eu não a forcei a nada e se está comigo, foi porque me escolheu.
     — Esse é o problema, você é perfeito demais. Não dá pra competir com a perfeição — falava com a voz embargada de emoção.
     — Se fizer essa besteira, Lucas, vai ser o maior fracassado de todos — tentava aproximar-se um pouco, com as mãos espalmadas em defesa. —A Tânia não te merece, mano. Está comigo por interesse. Sabe o que ela me disse? Que você é o cara mais interessante que ela já conheceu. E eu também acho. Tenho orgulho de ser seu irmão...
     Lucas largou a faca e caiu de joelhos, chorando desesperado. Luciano ajoelhou-se e o abraçou.
     — Desculpa, Luciano! Desculpa! Eu sou um verme invejoso, não mereço viver...
     — Calma, mano, calma...
                                    

*


     Tânia voltava para a casa de Luciano, havia esquecido a bolsa lá. Ao chegar à frente, viu a garagem se abrindo e o carro veloz de seu namorado dar a ré.
     — Luciano! — aproximou-se da janela do carro. Ele estava nervoso. — O que houve?
     — O Lucas tentou me matar e foi embora dizendo que ia acabar com a vida! Rápido, liga pros meus pais. Eu vou ver se o encontro antes que seja tarde!
     — Não, eu vou com você! — desesperou-se ela. — Eu ligo no carro, pelo celular!
     — Entra, rápido! Ele é capaz de fazer besteira — disse abrindo a porta para ela.

     Rodaram durante uma hora. Nada de Lucas. Tânia chorava de forma convulsiva depois que Luciano recebeu a ligação do pai. Clamara para que ele lhe explicasse por que Lucas tomara aquela atitude, mas ele disse que não havia tempo.
     — Você está alterada, Tânia. É melhor descer do carro. Se o encontrarmos, não será uma boa idéia que esteja presente.
     Tânia tentou contestar, mas estava fora de questão. Ele a deixou em casa e continuou sozinho no carro. Dirigiu para a beira de um rio.
     Desceu do carro.                   
     Abriu o porta-malas.
     Olhou bem para o corpo morto do irmão, lá dentro.

*

     — Calma, mano, calma... — ele abraçava o irmão caçula que chorava incontrolavelmente.
  Luciano pegou a faca do chão, e enterrou-a no peito de Lucas.
     — Há anos aguardo esse momento, irmãozinho — sussurrou ao ouvido de Lucas, torcendo a faca enquanto ele agonizava. — Você sempre ficava com o que mais tinha valor, o que era meu por direito, Lucas. A garota que eu mais amei. A Teresa se apaixonou por você e você desperdiçou, não a deu valor. Por isso ela foi embora para sempre... E o que eu mais queria, o amor de meus pais, você me roubou completamente... Eles deixaram claro que você era o preferido. Passei a vida tentando impressioná-los, mas eles só enxergavam você, mesmo sendo um maldito fracassado! Tomei sua garota por maldade, só pra vê-lo sofrer, seu maldito! Eu fui o primeiro, eles deviam me amar! A mim! — Lucas golfou sangue em sua camisa. Luciano retirou a faca, afastando-se. O corpo morto caiu no chão.
      Contemplou com incontida alegria o fim de anos de vingança. Fizera de tudo para conquistar a atenção dos pais, mas era invisível. Seu maldito irmão tomara o que mais queria. Passara a vida inteira dedicando-se àquela vingança sádica e demorada. Queria ver o irmão sofrer, sucumbir no próprio ódio, tornar-se menor que nada. E conseguira. Finalmente. Pudera enfim enterrar todo o seu ódio no peito dele através daquela lâmina.
     Foi limpar o sangue do corpo, para livrar-se logo do cadáver de Lucas. Agora tudo seria só seu.
     Seria o único.
     E seus pais teriam de amá-lo...

     No funeral de Lucas, havia vários amigos, parentes e alunos que o viam mais do que um professor. Luciano estava abraçado com Tânia, que também chorava convulsivamente. Os pais dele estavam desolados. Choravam a dor terrível da perda do filho. Luciano aproximou-se dos pais, afastando-se de Tânia. Por trás de seus óculos escuros, estavam dois filetes de lágrimas para não causar estranheza. Era sua hora de por fim conquistar a atenção dos pais.
     — Pai, mãe, não se preocupem, eu vou cuidar de vocês.
     — Por que ele se matou, meu Deus? — perguntava-se desesperado o pai. — Por que tirou a própria vida?
     — Ele não mereceu o amor de vocês, pai. Não deu valor...
     — Não mereceu o caralho! — gritou o velho, de repente. — Você é quem devia ter ido no lugar dele! Você nem devia ter nascido!
     Luciano ficou estático. Tirou os óculos, revelando seu olhar em choque.
     — P-Pai... O que...
     — Amor! Pare, por favor! — implorou a mãe dele, tentando acalmar a fúria do pai.
     — Não, querida! Chega de guardar esse rancor no peito! Devia ter abortado esse cara quando teve a chance. Toda vez que olho pra ele lembro que é fruto de um estupro, filho de um maldito bandido que te violentou, meu amor! Passei a vida inteira fingindo que ele era meu filho, mas ele é filho do mal! Filho do diabo! — cuspiu na cara de Luciano.
     A mulher caiu de joelhos, em agonizante pranto. O homem deu as costas, afastando-se do aglomerado de pessoas chocadas com a cena. Tânia imediatamente andou até Luciano que estava imóvel.
     Ia dizer algo, mas não teve reação perante a expressão no rosto do namorado.
     Nunca esqueceria aquele olhar.
     Um trovão explodiu no céu. Parecia uma gargalhada de Deus.
     Ou do Diabo.
     Começou a chover.

5 comentários:

Dark Gero disse...

Valeu, Tindarsam! Adorei a introdução no conto. Espero que os leitores gostem. Eu mesmo acho o conto muito pesado e controverso, mas ele está entre os meus prediletos. Eis o mal, pura e simplesmente transbordando do ser humano. Demasiadamente humano...

T. Tindarsam disse...

Com certeza! A maldade humana assusta os piores monstros. Você estava inspirado quando escreveu a história. Já imaginei um filme. Sucesso!

Ticiana Cruz disse...

Mt bom! Sinceramente me parece mais Literatura Brasileira do que o conto da Máscara. A-DO-RE-I

Cássio disse...

Pega, porra! Massa o final! Nem imaginava.

Mikah Criis disse...

Gostei bastante...Concordo com o Tindarsam.. Posso imaginar um grande sucesso no cinema.

Postar um comentário