O MANÍACO DO BILHETE

Maníaco do Bilhete

Suzy Ramone
 
O horror é um gênero tão abrangente que sempre interage com temas como o crime, a psicopatia, a perseguição, o desespero. Este conto é a prova de que escritores empenhados e criativos podem fazer histórias que nos intrigam e nos fazem, desesperadamente, querer saber o final. Um tipo de terror psicológico, melhor dizendo, um thriller de perseguição contextualizado com temas novelescos como a traição e a vingança. Além, é claro, de seu grande final.
 

     Ao aproximar-se de seu carro, Marcos encontrou preso no para-brisa um pedaço de papel. Não era um panfleto comum, disso já desconfiava por causa das pautas na folha.
     Curioso, desdobrou a página arrancada de um caderno e se surpreendeu com a brincadeira de mau gosto:

“Dez mil reais dentro da lixeira na esquina do posto de gasolina da Rua Ponta Lisa até a meia noite, ou a morte de todos os seus queridos animais de estimação”.
 
     − Bobagens! Sussurrou amassando a lamina e a jogou no meio fio.
     Quem seria o idiota que estava tentando pregar-lhe uma peça?
     Pensou no sócio Nilton. Talvez ele tivesse descoberto suas falcatruas sobre o desvio de verbas da corporação. Nilton sabe a adoração que Marcos tem por aqueles Pit Bulls que cria no vasto quintal de sua residência. Aliás, todos sabem.      Não é segredo que os animais são para ele mais valiosos do que qualquer membro da família.
     Nilton tem muito dinheiro e além do mais se precisasse de dez mil bastava pedir que Marcos emprestaria.
     Abriu um sorriso patético enquanto dirigia. Durante uns cinco minutos aquele bilhete o intrigou, não mais que isso. Tinha coisas importantes com que se preocupar e não acreditava que alguém pudesse fazer mal aos seus bichos de estimação.
     Passou na floricultura e não economizou no buquê de rosas vermelhas. Sarah teria uma surpresa.
     Assim que abriu a porta, a namorada de Marcos arregalou os olhos deslumbrados com o buquê exagerado.
    − Feliz aniversário, querida!
     − Puxa, obrigada! – Ela exclamou com um sorriso de ponta a ponta enquanto afastava mais a porta para que ele entrasse.
Trocaram beijos apaixonados e não mais que de repente o sorriso de Sarah feneceu dando lugar a um semblante sério e preocupado.
     − O que houve? – Ele perguntou.
     − Nada. É só que eu não gosto dessa data. - Ela baixou o olhar.
     − Ah deixa de bobagem. Venha, vamos ao cinema.
     Sarah concordou com o mesmo sorriso de sempre e os dois saíram.
     Ela escondia a tristeza por ter descoberto a traição de Marcos. No dia anterior, um telefonema anônimo a levou até o local do crime.
     Cheia de ódio, espiou pela vidraça do restaurante o encontro romântico de seu namorado com a vaca loira da rua de baixo. Fabiana, que outrora participara de sua vida e fora sua melhor amiga, estava ali olhando nos olhos de seu homem enquanto as mãos do cafajeste passeavam sobre as dela.
     Idéias mirabolantes de vingança saltavam da mente de Sarah como pulgas atacadas por veneno no pelo de um felino.
     As cenas do filme que passava não prenderam a sua atenção. Como ele poderia ser tão cínico? De alguma forma Sarah faria com que a mascara caísse. A vontade que teve foi de fazê-lo engolir aquelas rosas com espinho e tudo, mas manteve o controle. Ficaria calma até que concretizasse o seu plano de vingança.
     Já passava das onze quando Marcos a deixou na porta de casa e foi descansar. Amanhã teria um dia cheio na firma e se tudo desse certo levaria Fabiana para um motel na hora do almoço, como sempre fazem os homens comprometidos com o intuito de não despertar a desconfiança das esposas e namoradas.
     Que canalha! Pensou consigo mesmo abrindo um sorriso sacana.
     Brincou com os cachorros e tomou um longo banho. Aconchegado nos lençóis macios de cetim, se entregou ao sono profundo e nem por um instante lembrou-se do bilhete encontrado esta manhã.
     Abordado pela claridade que passava pela brecha da cortina, Marcos despertou. Espreguiçou-se sonolento e com os olhos semicerrados cambaleou até o banheiro.
     Ao finalizar a higiene matinal, saiu do toalete e afastou o acortinado dando as boas vindas ao sol que brilhava lá fora.
     Um calafrio subiu pela espinha ao percorrer os olhos pelo quintal. Não quis acreditar que espalhados pelo tapete de grama verde, jaziam inertes os seus tão queridos cães. Seus amigos, seus companheiros, os responsáveis pela sua alegria haviam sido assassinados.
    Num lapso de desespero, apertou as pálpebras vislumbrando a caligrafia daquele maldito bilhete.
     Correu para fora e ajoelhou-se perante os amigos enquanto as lágrimas lavavam o seu rosto incrédulo.
     Os oito Pit Bulls estavam mortos e não havia mais nada que pudesse ser feito. Se ele tivesse dado atenção àquele bilhete, se tivesse pago os dez mil... Por Deus!   Quem faria uma coisa dessas?
     Com muito custo, encaminhou os corpos para o crematório da prefeitura e recolheu os bifes envenenados que restaram no quintal.
     Estava sem condições psicológicas de ir trabalhar, mesmo assim queria sair dali. Quem sabe ocupar a mente com o serviço amenizaria um pouco o sofrimento daquela triste perda.
     Entrou no veículo estacionado na garagem e uma lufada de pavor invadiu suas entranhas ao notar preso no para-brisa mais um bilhete sinistro e perturbador.
     Com cada parte do seu corpo tremendo feito vara verde, Marcos leu as inscrições:

“Eu avisei! Você tem três horas para serrar a sua mão esquerda e depositá-la na lixeira do posto de gasolina. Caso desobedeça, um ente muito querido passará dessa para melhor.”
PS: “Se a polícia for envolvida nisso, as coisas ficarão piores do que você imagina.”

     Não deu para segurar. Um jorro de vomito lavou tudo ao redor. A cabeça girava num turbilhão de imagens misturadas ao som do telefone que tocava.
     Quase se arrastando, Marcos chegou até a sala e atendeu a ligação.
     − Alô. – Disse com a voz embargada.
     − Faltam duas horas e trinta e cinco minutos. O que vai ser? – Disse a voz quase familiar desligando a seguir.
     Marcos deitou-se no carpete e assistiu o teto rodar. Queria se levantar, mas não tinha forças. Pensou em Sarah. Se alguém a fizesse mal... Pelo menos sua mãe e sua irmã estavam protegidas, pois moravam em outra cidade longe do psicopata que... Uma golfada azeda saiu pela boca trêmula. Uma nuvem negra invadiu a sua mente e sentiu que ia desmaiar. Não! Não podia desmaiar!     Precisava entregar o souvenir para o bandido. A serra. Tinha que buscar a serra no porão! O corpo começou a formigar e a consciência foi engolida pelo breu.
     Bem ao longe, o som da campainha irritante ecoou em seus ouvidos e aos poucos foi tornando-se mais nítida e estridente na medida em que Marcos recobrava os sentidos.
     Horrorizado, entre o vomito espalhado no carpete e o tocar insistente do telefone, viu a noite invadir pelas vidraças e rezou para que o desgraçado tivesse blefado dessa vez.
     Levantou o braço tateando a mesinha em busca do aparelho.
     − Alô. Disse com dificuldade.
     − Marcos! – A voz chorosa respondeu. – Marcos, a mamãe... – Soluços interromperam.
     − Lia? Lia? O que houve?
     − Marcos, a mamãe foi assassinada. – Comunicou sua irmã desabando a chorar.
     − Lia. Estou indo para aí. Acalme-se. Dentro de duas horas no máximo estarei chegando. Você consegue me esperar?
     − Ta bom. Vem logo, por favor! Foi horrível, Marcos. Horrível...
     − To saindo daqui.
     Apressado e sem conseguir raciocinar direito, Marcos entrou no carro e rumou para a casa da irmã.
     Só se deu conta do estado deplorável já no meio do caminho. As roupas amarrotadas com crostas de vomito seco e o cabelo desgrenhado só fariam piorar o estado de choque da irmã. Mas que diabos estava pensando? Sua mãe acabara de ser assassinada e ele estava preocupado com a aparência? Quem seria o responsável por tanta crueldade? O que teria feito de tão ruim para merecer um castigo desses?
     Meu Deus, o psicopata cumprira a promessa. Dá pra acreditar?
     As lágrimas escorriam molhando a camisa. Uma tempestade desabou de repente como se os céus também chorassem.
     O encontro com Lia foi muito triste.
     A mãe fora encontrada no chão da cozinha com uma mão serrada e enfiada na boca.
     Tudo bem que Marcos não era um exemplo de caráter. Tudo bem que vinha traindo a namorada e desviando dinheiro da empresa, mas duvidava que o sócio ou qualquer outra pessoa que conhecesse pudesse ter feito aquilo.
     Após o enterro, Marcos decidiu ficar na companhia da irmã. Ligou para Sarah e pediu que ela viesse, mas esta preferiu permanecer em sua casa até que as coisas se ajeitassem.
     Durante quatro dias Marcos pôde descansar. Nenhum bilhete assustador, nenhuma ameaça aparente e três vezes a cada hora se certificava de que Sarah estava bem.
     Não ligou para a amante Fabiana nenhuma vez se quer. O remorso o envolveu. Daria fim a este caso e assim que tudo se acalmasse pediria Sarah em casamento. Precisava se regenerar. Parar com as atitudes de moleque que já não combinavam com um homem de quarenta anos.
     Queria filhos. Isso. Muitos filhos. Já estava na hora de pensar sobre isso.
     Marcos aprontou-se para partir.
     Lia, menos aterrorizada com os ocorridos prometeu que ficaria bem.
     Ele entrou no carro e deu partida. Nenhum bilhete no para-brisa. Tudo estava voltando ao normal. Quem quer que tivesse feito aquilo parecia já estar satisfeito com tanta desgraça.
     Marcos parou em uma lanchonete na beira da estrada. Pediu um refrigerante e comeu um sanduiche de atum. Iria direto para a casa de Sarah. Mal podia esperar para vê-la.
     Pagou a refeição e deixou o boteco ansioso. Os passos apressados descontinuaram quando viu ao longe uma folha de papel pregada no para-brisa do carro. O tremor novamente apoderou-se de seu corpo.
     Lentamente Marcos avançou em direção ao veiculo. Hesitante pegou a folha e a manuseou por alguns instantes sem coragem de abri-la.
     O que quer que esteja escrito lá dessa vez ele faria. Não podia colocar em risco a vida de mais ninguém.
     Vacilante correu os dedos entre as laminas desdobrando a folha de papel.

“Uma corda amarrada no caibro do porão de sua casa te espera. Suba na cadeira e a coloque no pescoço. Você tem uma hora para dar fim a tua vida. Caso desobedeça, matarei sua noivinha. Qual vida vale mais, a sua ou a dela? Está em suas mãos”.
 
     Não. Não pode ser!
     Dirigindo feito um louco ele fez o percurso restante em quarenta minutos.
     A porta da casa de Sarah estava trancada. Tocou a campainha desesperadamente e esmurrou a janela até que o vidro se rompesse abrindo um corte em sua mão.
     Sarah desceu as escadas nervosa.
     − Marcos! O que houve? – Perguntou abrindo a porta.
     − Ai, graças a Deus. – Suspirou aliviado abraçando a sua amada.
     − Vamos, temos que sair daqui. – Ele disse. – Pegue algumas roupas e vamos sair agora!
     − Não! Não vamos a lugar algum! Temos muito o que conversar e além do mais você está muito nervoso, totalmente fora de si!
     Ele a abraçou se esvaindo em lágrimas.
     − Eu sei o porquê desse desespero todo. – Ela disse o empurrando. – É a Fabiana, não é?
     Ele baixou o olhar. Como ela sabia da Fabiana?
     − Pois eu já estou sabendo e não adianta vir aqui demonstrando todo esse arrependimento descabido porque eu não vou te perdoar!
     − Sarah, a Fabiana não significa nada para mim. Nós temos que sair daqui agora e eu não posso te explicar os motivos nesse momento. – Ele falou com sinceridade.
     − Senta aí e cala a boca!
     Ele obedeceu apavorado.
     − Marcos, a Fabiana esteve aqui. Ela está grávida, sabia?
     Um silêncio enfadonho destacou o som dos soluços que escapavam pela garganta de Marcos. Ele olhou no relógio. Tinha cinco minutos para chegar em sua casa e salvar a vida de Sarah.
     Levantou-se e correu até a porta, mas foi puxado pelo braço que o devolveu com violência ao sofá.
     − Você não vai sair daqui! – Ela gritou descontrolada. – Primeiro vai ouvir o que eu tenho a lhe dizer e assim que passar por essa porta, nunca mais quero ver a sua cara! Cafajeste!
     Sarah falou, falou, chorou, chorou e assim que o tempo estipulado pelo psicopata se esgotou, Marcos levantou o olhar.
     Seu semblante não era o mesmo. Feições malignas transfiguraram o seu rosto e uma risada sinistra repercutiu pelos cômodos da casa. O mesmo Marcos que a pouco soluçava copiosamente agora deixava escapar gargalhadas assustadoras.
      − Esta zombando de mim? – Sarah berrou o golpeando com os punhos cerrados.
     Ele a segurou pelos cabelos e olhou bem fundo em seus olhos.
    Sarah sentiu a ira que jamais presenciara em sua vida. Aquele não era o     Marcos. Não podia ser!
     Marcos a arrastou até a cozinha onde pegou uma faca e a golpeou.
     Pontapés arrombaram a porta. O policial deu um tiro certeiro na cabeça do assassino que caiu ainda segurando os cabelos de Sarah agonizante.
     − Acabou.- Disse o homem com a sensação de dever cumprido.
     Sarah foi levada ao hospital onde se recupera da facada. Sorte que os órgãos vitais não foram perfurados e em poucas semanas poderá ir para casa.
     Fabiana a visitou com um pedido de desculpas e um lindo vaso de flores brancas.
      Contou a Sarah que já suspeitava das atitudes estranhas de Marcos e decidiu ir á polícia.
     Durante a investigação, descobriram que ele próprio escrevia uns bilhetes os postando no para-brisa do carro. Após a sua morte encontraram o caderno, a caneta e compararam a caligrafia do defunto com os dois bilhetes achados no bolso de uma calça.
     Frascos de chumbinho escondidos no porão evidenciavam o assassinato dos cães.
     Nilton, o sócio, fez uma ligação para a casa de Marcos lendo o recado que o próprio pediu que ele lesse.
     − Faltam duas horas e trinta e cinco minutos. O que vai ser?
     Sem nenhum tipo de suspeita, Nilton atendeu ao pedido do amigo que alegara ter um compromisso e precisava ser lembrado.
     Marcos viajou até a cidade onde a mãe morava e esperou que a irmã saísse para cometer o crime contra a sua própria genitora. Suas impressões digitais foram encontradas na serra usada friamente naquela ocasião e dias depois do enterro, o garçom da lanchonete vira quando Marcos rabiscara um papel e o prendera no próprio veículo.
     Naquele momento Marcos já estava sendo vigiado e foi por esse motivo que a polícia o encontrou prestes a matar a namorada.
     Ninguém consegue compreender como um cara tão bem sucedido e aparentemente equilibrado foi capaz de cometer tantas atrocidades.
     Ele enganou e ludibriou direitinho todas as pessoas com quem convivia e se não fosse a denuncia de Fabiana e o bom trabalho da polícia, muitas vidas ainda seriam cruelmente tiradas pelas mãos do maníaco do bilhete.

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